Translate

25/07/2016

                Quero agradecer ao Demônio pela graça 


– Eu queria agradecer a Deus por mais esta conquista e dizer que sem a força dele,
a minha vida e a vida de todos aqui não fariam sentido.
Não posso negar que sinto uma certa tristeza em assistir a cerimônias de
premiação, finais de campeonatos esportivos, formaturas e afins nas quais o
discurso do agraciado seja inteiramente baseado em alvíssaras a Jeová, Alá ou

demais nomes dados ao deus ou à deusa de Abraão (como não houve
comprovação de gênero, cabem os dois).

Não tanto pelo ato em si. Ele pode atribuir a razão de sua vitória a quem quer que seja – deus, sua mãe, Frank Underwood, J. Pinto Fernandes – que, como Carlos
Drummond de Andrade avisou, não estava na história.
(Particularmente, acho que deus – se existir – não gosta de ser culpada por cada
gol na face da Terra. Pois nem mesmo deve gostar de futebol. E se ela curtir bocha
e tranca? E, desconfio que, se houver uma Inteligência Suprema, será esperta o
bastante para não influenciar na vida de ninguém.)

O problema é o proselitismo religioso. Por isso, adoraria que alguém, sob os
holofotes e os microfones de toda a mídia, resolvesse, um belo dia, dizer algo
como:

– Eu queria agradecer ao Diabo, ao Capeta, ao Tinhoso, a Lúcifer por mais esta
conquista e dizer que sem a força dele, a minha vida e a vida de todos aqui não
fariam sentido.
OK, um atleta que isso proclamasse seria, certamente, repreendido, condenado,
repudiado, vilipendiado, destroçado, moído, exilado, reciclado. Acusado de louco.

Afinal, o deus cristão representa tudo o que há de bom (há controvérsias), enquanto

o Tinhoso representa a negação de tudo isso (também há controvérsias,esse
mundo é por demais maniqueísta!), o que faria com o que o ato de agradecimento
fosse visto como uma forma de difundir o mal.

Se você ficou magoado com essa comparação, troque o diabo e deus por outras
figuras mitológicas:

– Eu queria agradecer a Yoda por mais esta conquista e dizer que sem a força dele,
a minha vida e a vida de todos aqui não fariam sentido.

Estamos acostumados a aceitar passivamente que o cristianismo seja a religião
oficial do país. Mesmo o país sendo teoricamente laico. A ponto de muitos não
acharem descabido sessões de proselitismo levadas a cabo por figuras públicas em
qualquer momento.

Não nego que fico com um pouco de vergonha alheia em alguns casos. Por
exemplo, sabe quando jogadores de futebol ficam em roda rezando, no gramado,
antes de bater uma sequência de pênaltis ou comemorando a tal sequência bem
batida? Não sinto vergonha por quem está em roda, mas pelo locutor esportivo que,
naquele momento, comemora o ato como um “exemplo da cultura brasileira''.
Vontade de me esconder e nunca mais aparecer.

Ah, mas o deus cristão está em nossas raízes históricas! Adoro quando alguém
apela para as “raízes históricas” para discutir algo. A escravidão, a sociedade
patriarcal, a desigualdade social estrutural, a exploração irracional dos recursos
naturais, a submissão da mulher como mera reprodutora e objeto sexual, as
decisões de Estado serem tomadas por meia dúzia de iluminados ignorando a
participação popular, lavar a honra com sangue, caçar índios no mato, tudo isso
está em nossas raízes históricas.

Queimar pessoas por intolerância de pensamento está nas raízes históricas de
muita gente.

Respeito a liberdade e a dignidade de credos e fés. Mas sinto uma paúra no
estômago porque nem todos credos e fés respeitam a liberdade e a dignidade dos
outros. E existem diversas formas de desrespeitar a fé alheia. O problema é que as
reclamações surgem de uma maioria cristã, apesar dela ser a principal responsável
pela sistemática opressão de outras minorias.

É um debate pequeno? Nem de longe, pois é simbólico. Mas, cuidado, porque essa
discussão mata há muito tempo.



Leonardo Sakamoto 15/01/2016 

14:29

Nenhum comentário:

Postar um comentário